Há alguns anos, a United States Playing Card Company (USPC) vem embalando alguns de seus produtos clássicos – como as marcas Bee e Bicycle – em um estojo especial que leva a indicação de “Great Mogul”. Por informações do próprio fabricante, esses ‘Moguls’ são baralhos na linha ‘seconds’, que, por apresentarem pequenos defeitos, são retirados da linha principal de produção e vendidos por preços menores, atendendo a usuários menos exigentes. De uma maneira geral, os defeitos encontrados são diminutos, limitando-se a diferenças no registro do dorso das cartas, pequenas manchas no dorso e mesmo na parte frontal, diferenças de coloração e outras pequenas falhas. Em muitos casos, é difícil distinguir essas distorções, que apenas olhares atentos do controle de qualidade da fábrica conseguem localizar.
A utilização da marca Great Mogul é, aparentemente, usada para atrair colecionadores e admiradores de baralhos, usando uma marca “vintage”, indicada no estojo de seus produtos, mesmo que no interior se encontre baralhos modernos, comuns. Uma técnica de marketing, dando uma nova roupagem a seus produtos habituais, para um mercado de segunda linha.
Embora alguns distribuidores destes baralhos façam referências à Great Mogul ser (como de fato é) uma marca antiga, o que dá a esses produtos um ar de raridade, informações mais acuradas sobre o que a marca realmente representa nem sempre são informadas. Vamos então a detalhes, sendo uma oportunidade de conhecer um pouco sobre o desenvolvimento dos baralhos na Inglaterra, e sua importância entre os tipos de baralhos mais usados atualmente.
Origens dos baralhos na Inglaterra
Várias referências indicam que jogos com baralhos chegaram a Inglaterra no início do século 15. Retornando à pátria depois da chamada “Guerra dos 100 anos” – que tem seu início convencionado em 1337, e que durou até 1453 – vários ingleses trouxeram a seu país essa modalidade de jogo aprendida na França. A maioria dos instrumentos usados para a prática do jogo (nossos corriqueiros baralhos...) eram produzidos na cidade de Rouen. Esta cidade, de resto um importante centro exportador da França, passou a ser o grande supridor de baralhos para a Inglaterra.
Dois tipos de baralhos foram criados e utilizados em Rouen: o primeiro, de uso restrito à região, desapareceu logo. O segundo padrão foi o levado à Inglaterra. Seu desenho tornou-se popular, sofrendo as inevitáveis modificações pelos vários artesãos e posteriores fabricantes que os produziram. Mas sua evolução foi apenas em detalhes, sendo as características básicas dos desenhos das figuras mantidas até hoje, no baralho que se tornou o padrão internacional de todos os baralhos.
Fig. 1a- Figuras do segundo desenho do baralho regional de Rouen, que deram origem ao baralho inglês, que se tornou o padrão internacional dos baralhos.
Fig. 1b- Figuras do atual padrão usada pela USPC nos seus baralhos do tipo internacional.
E o hábito de jogar se tornou extensivamente popular, a ponto de ser proibida a prática do jogo de cartas em 1461, exceto no período do Natal. Em 1463 foi vedada a importação de baralhos na Inglaterra, não como forma de proteção da indústria de baralhos local (então inexistente), mas para restringir o hábito de jogos, pela escassez de material para sua prática.
Essa proibição estimulou a alguns impressores se arriscarem no mister clandestino de fabricar baralhos. Mas sua importação, mesmo sem permissão, ainda era um mercado importante, especialmente para a França, e ameaçava a incipiente (mas crescente) produção de baralhos local. Essa importância foi bem qualificada tendo em conta que, no final do século 16, vários fabricantes de Rouen se estabeleceram em Londres, fugindo dos altos impostos e da situação econômica instável da França, além do estímulo obtido com a liberação do jogo com cartas na Inglaterra. Vender baralhos para a Inglaterra era um mercado que não poderia ser desprezado!
De qualquer forma, a importação de baralhos ainda constituía um comércio promissor a produção fora da Inglaterra. Para se defender dessa concorrência, os fabricantes ingleses, constituíram uma ‘guilda’ – associação de artesões surgidas na idade média, reconhecidas pelos governos como representantes ‘oficiais’ de cada atividade, desenvolvendo e defendendo os interesses da classe.
Formou-se, assim, em 22 de outubro de 1628, a Worshipful Company of Makers of Playing Cards (que abreviaremos aqui por WPC), que estabelecia proteção através de uma “charter” oficial, emitida por Charles I, então rei da Inglaterra. Uma das primeiras providências da WPC foi solicitar ao rei a proibição da importação de baralhos para a Inglaterra e País de Gales, o que foi formalizado em 1º de dezembro de 1628.
Para compensar a perda de impostos pagos pela importação de baralhos, o rei, ao banir esse comércio, exigia que a WPC pagasse um imposto de dois shillings por grosa de baralhos (12 dúzias), além de um shilling para o oficial indicado como recebedor dessas taxas. Adicionalmente, a companhia concordava em produzir baralhos suficientes para as necessidades do mercado, a preços não superiores aos cobrados pelos exemplares importados nos últimos sete anos. Como só ia acontecer, essas taxas foram gradualmente aumentadas ao longo do tempo, e isto foi restringindo as finanças e o poder da WPC, que foi perdendo gradativamente sua efetividade. [Sobre as origens de baralhos na Inglaterra e criação da WPC, são importantes as referências: 1, 2, 3 e 4]
Embora com poderes mais simbólicos que efetivos a WPC existe até hoje, mantendo a tradição das guildas da cidade de Londres. Uma das atribuições do seu ‘master’ é ser um dos privilegiados eleitores do prefeito da cidade de Londres. No mais, apenas mantem a tradição tão apreciada pelos ingleses, sem funções executivas dignas de nota.
Em 1882, no banquete que marcava, a cada ano, a escolha e posse dos administradores da WPC, cada membro da companhia foi presenteado com um baralho especialmente produzido para a ocasião. O dorso do baralho mostrava as armas da companhia, ladeadas por dois valetes de paus. O ás de espadas tinha os quatro naipes do sistema francês superpostos. O baralho foi fabricado por Goodall & Sons. Isto se tornou um hábito até os dias de hoje. Tradicionalmente cada baralho indica nos ases de espadas a figura do Master da WPC para o período, tendo nos dorsos a alusão a algum evento importante do ano. A coleção desses baralhos tornou-se, evidentemente, um objeto de particular interesse tanto por amantes de baralhos como daqueles que colecionam material referente às guildas da cidade de Londres.
Fig. 2a- Dorso de baralhos editados pela WPC (superior esquerda: 1889- armas da WPC; superior direita: 1915- King Charles I entregando a ‘charter’ da WPC em 1628; inferior esquerda: 1955- Sir Wiston Churchill; inferior direita: 1933- voo sobre o Everest.
Fig. 2b- Baralhos da WPC: superior- 1996- ás de espadas, master Michael Goodall / dorso comemorativo da indústria automobilística britânica (1896-1996). Inferior: 1965- ás de espadas, master Victor Watson / dorso Magna Charta (MCCXV-MCMLXV).
Em 1908, o então Master da WPC, Henry Druitt Phillips, constituiu uma coleção de baralhos mantida pela entidade, até hoje. Locada na biblioteca do Guildhall, onde mantem-se a sede de várias guildas da cidade de Londres, a coleção foi detalhadamente catalogada por John Berry, membro da International Playing Card Society. Publicado em 1995, este catálogo é importante fonte sobre baralhos ingleses e de outros países. [veja referência 5]
O controle das marcas de baralhos
Uma das atividades da WPC era registrar as marcas usadas por seus membros. E a variedade era notável! Marcas referentes a nobres e membros da realeza (tanto da Inglaterra como de outros países) eram intensamente usados, assim como seus pertences, locais e objetos a eles relacionados: “Prince of Orange”, “The Royall Forest”, “The Royal Woods”, “The Royall Barge”, “Prince George”, “Duchess of Monmouth”, “King Willian”, e tantos outros.
Outra prática comum, era designar baralhos por nomes de tavernas populares na cidade de Londres. Nomes como “The Windmill” (uma taverna muito popular nos séculos 16 e 17, em Lothbury), “The Leopard” (em Chancery Lane), “The Marigold and Sun”, e muitas outras, sem dúvida ligavam baralhos a seus usos como elemento de lazer e até de lucros e perdas, nas tavernas da cidade.
E surge a marca Great Mogul...
Em 1º de abril de 1741, Blanchard, um dos mais ricos fabricantes de baralhos da época, registrou “Great Mogul” como uma das marcas de seus produtos. Na verdade, há algum tempo o termo “Mogul” era associado a baralhos de qualidade superior. O nome era usado por uma taverna, em alusão a Mohamed Shah, o último imperador de Delhi, famoso e conhecido como The Great Mogul.
Fig. 3 - Involucro original de Blanchard, usando a marca Great Mogul.
Em outubro de 1742, Blanchard denuncia à WPC que Thomas Hill, fabricante não ligado à entidade, estava usando a marca Great Mogul, sem a devida autorização. Hill desconsiderou a denúncia, alegando que não tinha nada a ver com a Companhia. Foi multado em £ 5 (o que não era pouco dinheiro à época...), mas isso aparentemente não o alarmou!
Logo após este e outros eventos envolvendo uso de marcas, a prática de seus controles foi abandonada. Mas, a vinculação de marcas (não mais associada a um determinado fabricante) à qualidade dos baralhos tornou-se prática habitual. A gradação era hierarquicamente estabelecida da maior a menor qualificação de produtos: Great Mogul, Henry VIII, Valiant Highlander e Merry Andrew, esta apresentando os baralhos mais baratos e de menor qualidade. [veja referência 6]
Fig. 4- Embalagem com a marca Great Mogul, utilizada por I. Hardy. Século 18.
A utilização de Great Mogul como marca importante de baralhos foi comum até o começo do século 20, usada por fabricantes ingleses, americanos e mesmo de outros países. A Bélgica, importante fabricante de baralhos nos séculos 19 e 20 - inicialmente produtos de qualidade inferior usados para ganhar mercados internacionais pouco exigentes – usou extensivamente a marca pela maioria de seus fabricantes, procurando, desta forma, oferecer, mesmo que aparentemente, baralhos de qualidade.
Fig. 5- Invólucros Great Mogul usados por fabricantes belgas (da esquerda para a direita): Biermans, c. 1880; Biermans, c. 1885; Mesmaekers, c.1910.
A marca foi usada por International Playing Card Co., subsidiária canadense da USPC, situada em Windsor, no estado de Ontario. O baralho da minha coleção deve ter sido produzido em cerca de 2007, para o mercado de exportação. Internamente encontra-se um Bicycle normal, com dorso Rider Back.
Fig 6- Great Mogul canadense, c. 2007.
O desenho de estojo usado nos exemplares modernos comercializados por USPC foram originalmente produzidos para o mercado Tailandês em torno de 1965.
Assim, nem sempre a marca representou um indicador de qualidade superior, embora procurasse se valer desta imagem. O fato de ser usada atualmente por USPC em seus produtos de segunda linha indica essa classificação sem rigor, seja como técnica de marketing, seja por desconhecimento da história associada à marca.
Conclusão
Marcas são obvias identificações de produtos. E, por via de consequência, uma forma de qualificá-los. Baralhos não são exceções! Isso desde o século 18, pelo menos. Mas, ao associarmos marcas com qualidade, temos que atentar para as últimas informações disponíveis. Não fazer isso pode significar comprarmos gato por lebre!
Cláudio Décourt (Ruberdec)
Junho de 2025
========================================================
Referências bibliográficas
-
BENHAM, W. Gurney. Playing Cards; History of the pack and explanations of its many secrets. London and Melbourne, Ward, Lock & Co., 1931. 195 p.
-
THORPE, John G. The Playing Cards of the Worshipful Company of Makers of Playing Cards. 2nd. Revised Edition, London, Intercol, 1991. 66 p.
-
TURNER, Keith. Chaucer and Playing-Cards. The Journal of Playing-Card Society. Vol. VII, nº 1, p. 26- 30, 1978.
-
ALT, Laurence. Where Cards Printed in England in the 15th Century. The Playing-Card: Journal of Playing-Card Society. Vol. XVII, nº 3, p.100 – 102. 1989.
-
BERRY, John. Playing-cards of the World. Brownley, editado pelo autor, 1995.
-
HARGRAVE, Catherine Perry. A History of Playing Cards and a Bibliography of Cards and Gaming. Republicação da edição de 1966. Mineola, Dover Publications, Inc., 2000. 462 p.
-
GOODALL, Michael H. Early Playing Card Makers in London & Ireland 1600-1850. S.l., [editado pelo autor], s.d. 30 p.
Comentários
comprei 6 Great moguls e estou apaixonado com a qualidade, apesar de Seconds está perfeito! Ate mais macio que os standards!
Assisti uma palestra on-line sobre baralhos com o Ruberdec, um grande estudioso, excelente artigo!
Já tinha procurado por toda internet informações sobre este baralho, me surpreendi sabendo que vocês lançaram este artigo! Top!
Já tive a oportunidade de me manifestar por e-mail, mas gostaria de registrar aqui meus parabéns pela integridade e honestidade com que vocês sempre atuaram.
Explico: muitas lojas, especialmente uma nacional e também diversas internacionais, estão vendendo esse modelo como “ultra raro e vintage”, cobrando até valores exorbitantes. Isso vai contra a proposta original do produto, que sempre foi oferecer um ótimo custo-benefício. A forma como vocês explicam essa história com tanta paixão mostra que, acima de tudo, são verdadeiros entusiastas do que fazem e da história dos baralhos, não apenas comerciantes. Parabéns!